Hoje acordei pensando nos muitos sonhos que sonhei, daqueles que realizei, dos que não deram certo. E sigo sonhando. Sonhar a partir do que já foi vivido, sonhar com o que ainda não vivi.
E olho para esse texto do Salmo 44 e fico imaginando qual a idade do salmista, mesmo sabendo que não se pode saber isso ao certo. Não temos pistas suficientes. Mas como salmo é poesia, abre-se um leque de possibilidades para a minha imaginação. E quando o salmista começa sua oração dizendo a Deus que ouviu o que os pais contaram, então eu posso imaginar, com toda licença poética, que se trata de um jovem! E aí, me recordo que a memória tem sido desprezada como fonte de sonhos, mas ela é fundamental na narrativa bíblica. É a partir do passado que desenhamos nossa identidade, que nos posicionamos no mundo. Ela é um referencial para nossas esperanças futuras. O passado pode nos fazer sonhar e nos impulsionar. Então sonhe!
Porém, a cada dia, vemos as pessoas desprezando o passado, a história, dizendo que “lugar de coisas velhas é no museu” – uma frase famigerada para quem não sabe que um povo sem memória é um povo sem futuro. Talvez porque não saibam que o museu serve, justamente, para nos mostrar por onde ir e não ir, enquanto construímos nosso futuro, evitando os erros do passado e aprimorando seus acertos.
Lembro também que a memória também fala de testemunho – “nossos pais nos contaram” (v. 1) e este contar faz a diferença, constrói a história, forma a fé. Porque é ouvindo o que Deus fez que começamos a sonhar com o que Ele poderá fazer. Contar é fundamental, mas ouvir também é!
O sonho que vem do contar e do ouvir é resultado de um encontro de gerações neste salmo. Toda vez que eu leio, eu sonho. E é interessante que a profecia diz que os jovens terão sonhos e os velhos, visões. Comumente esperamos o contrário. Aquela ou aquele que é visionári@ é o impetuos@, @ ousado ou ousada e isso, de maneira estereotipada, é um valor agregado ao jovem. O idoso, por sua experiência e (achamos) calma diante da vida, tem sonhos e esperanças. Mas o encontro da visão dos idosos com os sonhos dos jovens cria o mundo novo do Reino de Deus. Por isso gosto de caminhar com jovens e idosos, porque a experiencia é riquíssima. Jovens que sonham, que têm expectativas, estão sempre prontos a ouvir uma boa ideia, um bom conselho, venha de onde vier. Se nos firmarmos em Deus, certamente não deixaremos escapar a memória salvífica e o testemunho do que Deus já fez.
E então, sonhar, apesar das circunstâncias do presente, nos dá animo, esperança e coragem para seguir em frente.
O momento atual não está muito bom. Covid-19, morte, dores, sofrimento, desemprego, fome. A situação do salmista e do seu povo não era dos melhores. Parece que os tempos ruins de lá, estão cá. A maior parte do salmo consiste em falar dessas circunstâncias, que apontam para uma calamidade nacional. O salmista sabe que os inimigos estão ao redor e ele sabe que não pode vencê-los a partir de suas próprias forças, como ocorreu com seus pais no passado.
Os momentos difíceis, para muita gente, é hora de fuga da realidade. E alguns dizem que o sonhar é uma fuga. Mas não! Já no sonho, no contexto do salmo, não tem a ver com fuga, mas com livramento, cuidado. Por isso, apesar das dificuldades, o salmista ressalta sua fidelidade à aliança e a Deus (v. 17-18). Algumas pessoas insistem em dizer que os sofrimentos pelos quais passamos são resultado de nossa falta de fé ou de nossos pecados. Mas ainda bem que não! O salmista diz que é justamente por causa de sua fé que eles, como nação, sofrem tais ataques (v. 20-22). Assim sendo, entram na galeria dos bem-aventurados de Mateus (5.10). Para se sonhar os sonhos de Deus, muitas vezes é preciso ir contra o senso comum, contra as ideias preconcebidas da sociedade, contra os princípios do mercado. É um sonho de resistência e de persistência. Não se pode desistir dele e é preciso defendê-lo dos ataques externos – a sociedade, o mundo, as forças que tentam nos impedir de seguir adiante. As circunstâncias ao redor não favorecem os sonhadores de Deus. Tudo o que eles almejam parece tão fora da realidade. Os valores que defendem parecem tão fora de moda... E eles precisam resistir e persistir.
A situação não era boa para o salmista e seus contemporâneos, mas todo o tom do salmo aponta para esta resistência do sonho que eles carregavam em si e sua busca pela fidelidade à aliança. Eles clamam a Deus para que os defenda (v.23-24). Aqui está o segredo da resistência: o sonho vem de Deus! Ele é a fonte da esperança que alimenta os sonhos. Por causa de sua origem, o sonho pode vencer as adversidades da vida!
E seguimos sonhando, porque sonhamos por causa das possibilidades do futuro. O texto termina com a nota de esperança, o pedido a Deus para que se levante e defenda seu povo. Este é a contribuição que temos a deixar hoje para a nossa geração e para as gerações futuras. A perspectiva de que já vivemos dias bons, que já experimentamos em nosso passado a presença tangível de Deus. Já recebemos livramentos e cuidados. E ainda que nosso hoje nos pareça atemorizante, podemos aguardar a promessa de que o sonho se concretizará no futuro. Por isso, é importante seguir contando, seguir lembrando, seguir crendo, porque Deus está conosco. O sonho, para nós, cristãos e cristãs hoje, não pode se limitar à nostalgia, que é a ideia de que o ontem foi melhor do que o hoje é. Nem escapismo, por achar que o futuro é que vai trazer as respostas que nos faltam no momento. O sonho é um caminho de fé que se percorre no dia a dia, com as âncoras do passado e as ferramentas do futuro. Por ser proveniente da perspectiva do reino, o sonho é, embora ainda não... como o Reino de Deus.
Por isso mesmo, ele exige compromisso, engajamento, um senso de pertencimento que nos liga a todos os que caminharam por estas trilhas. Não pode ser vivido levianamente, nem moldado segundo nossos desejos ou construído por nossas forças. O sonho de Deus emana da aliança que temos com ele, essa mesma que fizeram os que viveram antes de nós e que temos de deixar para os que vierem depois, até que Cristo retorne! Assim, sigamos sonhando, com fé, porque tudo de ruim vai passar! Deus nos abençoe!
Odete Liber