Povo de Israel, eu amo o povo da Etiópia tanto quanto amo vocês (Am 9:7)
Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus. (Gl 3:28)
A Ruah Divina, o Espírito Santo de Deus que renova a face da Terra, tem soprado ventos novos no tão antigo combate ao racismo, a partir da emblemática e agônica exclamação “Eu não consigo respirar”, feito por George Floyd, cidadão afro-americano morto após 09 minutos de estrangulamento numa ação policial, diante de testemunhas e câmeras de celular. Tanto a desesperada exclamação de Floyd, quanto o fôlego novo soprado pela Ruah Divina não dizem respeito apenas aos Estados Unidos da América, mas às nossas Américas e, quiçá, a todo o mundo, como se pode ver nos protestos que tomam as ruas em todo o globo terrestre.
Atentos e atentas à ação da Ruah Divina e em sintonia com nosso amplo histórico de defesa da vida e dos direitos civis, manifestamo-nos enquanto bispos e bispas desta igreja, no sentido de denunciarmos o recrudescimento do racismo em nosso país. Sentimo-nos, também, para isso, estimulados e estimuladas por uma centena de pessoas anglicanas negras e indígenas que, preocupadas com o próprio cenário brasileiro, numa feliz coincidência de vontades, solicitou à Câmara Episcopal um pronunciamento, mediante o envio da Carta à Câmara Episcopal sobre o Genocídio de Pessoas Negras e Indígenas.
É preocupante o cenário de escalada da cultura do racismo que temos diante dos olhos, insuflada institucionalmente desde o Governo Federal, a ponto de se proliferarem episódios de crime de ódio ou discriminação racial escancaradamente. Compõe os infortúnios desse cenário o desmantelamento de órgãos públicos como a Fundação Cultural Palmares e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) destinados, por natureza, ao fomento de políticas públicas étnico-raciais, respectivamente para o povo negro e os povos indígenas. Bem como a violência física contra os corpos negros e indígenas, ocorrida por mãos de policiais (para aqueles) e de grileiros (para estes), contando com a indiferença do Estado e, em casos específicos, sua própria anuência.
Cumpre destacarmos ainda, neste cenário, os sofrimentos das mulheres negras, principais vítimas da violência doméstica e feminicídio, cujos números de ocorrência se aprofundaram no contexto da COVID-19; além da dor de tantas outras, cujos filhos (Marco Vinícius, Maria Eduarda, Ágatha, João Pedro e Miguel) tiveram inocentemente suas vidas ceifadas em decorrência da necropolítica a que são submetidas as populações negras. Mulheres com o estado psicológico destruído, sem que haja política própria, para isso que já se tornou um grave caso de saúde pública.
Ademais, em termos de saúde pública, a pandemia da COVID-19 escancarou mais uma vez a necropolítica que hierarquiza os sujeitos por grau de importância, elegendo para a morte populações fragilizadas, ao negar-lhes o acesso a direitos básicos que, juntos, formam o que chamamos de saúde integral. Razão pela qual estas populações encontram-se mais vulneráveis ao vírus, como indicam os números segmentados de contaminação e morte por COVID-19.
A afirmação do Gênesis (1:26) sobre o desejo do nosso Deus de criar os seres humanos à sua imagem e semelhança (“Façamos o ser humano a nossa imagem e semelhança”) faz-nos entender que o gênero humano, em toda sua diversidade de matizes, é querido por Deus e revela o próprio Deus, porquanto é sua imagem e semelhança.
Por essa razão, o racismo deve ser denunciado como pecado e todos os grupos vítimas de racismo devem ter sua dignidade reconhecida e protegida por nós, cristãos e cristãs, incluindo os afrodescendentes e indígenas – é preciso que se diga, uma vez que argumentos teológicos serviram de justificação para “roubar, matar e destruir” (Jo 10:10) os povos originários, bem como o povo africano e sua descendência.
Compreendemos que a tão propalada e banalizada intolerância religiosa é mais uma faceta do racismo estrutural, que viola o direito de liberdade de culto a irmãs e irmãos de tradições de matriz africana. Direito esse que se violado para estas e estes, deve ser por nós interpretado como uma violação que nos aflige, já que o direito assegurado pela Constituição Federal é o mesmo para todas e todos nós.
Compreendemos igualmente que o capitalismo, que se alimenta da segregação classista, racista e sexista de pessoas e grupos, atualmente corporificado na necropolítica que aqui denunciamos, expõe a atualização do fascismo que desumaniza e nega a vida como bem inalienável, que para nossa fé cristã é o maior bem que recebemos de Deus.
A inclusividade anglicana – que deve ser um “lugar” de encontro e diálogo – impele-nos a proclamar a dignidade das pessoas pertencentes a esses grupos étnico-raciais, denunciar a violência e a negação de direitos de que são vítimas, bem como a trabalhar para que nossas comunidades sejam igrejas seguras a estas pessoas, seja por nossa luta antirracista, proteção contra toda forma de ódio, seja pelo acolhimento integral de sua identidade étnico-racial, valorizando-as em todas as dimensões da vida da IEAB.
Enquanto bispos e bispas desta igreja, sentimo-nos compelidos e compelidas a motivar todas as instâncias da IEAB a ampliarem o discipulado, o profetismo e a diaconia com nossos irmãos e irmãs afrodescendentes e indígenas, de modo que nossa comunhão seja significativamente uma comunhão para todas as gentes, como pretende o ethos anglicano.
Fazendo uso das palavras do apóstolo Paulo, “sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto” (Rm 8:22), por um tempo novo de igualdade e justiça. Queremos, por isso, enfrentar como igreja as mais diversas facetas do racismo estrutural, tendo em conta que as marcas de nossa missão orientam a Igreja a “procurar a transformação de todas as estruturas injustas da sociedade” e a “responder às necessidades humanas com amor”.
Sábado, 03 de junho de 2020
Bispo Naudal Alves Gomes – Diocese Anglicana do Paraná – Primaz da IEAB
Bispo Maurício Andrade – Diocese Anglicana de Brasília
Bispo Francisco de Assis da Silva – Diocese Sul Ocidental
Bispo João Câncio Peixoto – Diocese Anglicana do Recife
Bispo Humberto Maiztegui – Diocese Meridional
Bispo Eduardo Coelho Grillo – Diocese Anglicana do Rio de Janeiro
Bispa Marinez Rosa dos Santos Bassotto – Diocese Anglicana da Amazônia
Bispa Meriglei Borges da Silva Simim – Diocese Anglicana da Pelotas
Bispo Francisco Cézar Fernandes Alves – Diocese Anglicana de São Paulo
https://www.ieab.org.br/2020/06/13/pronunciamiento-da-camara-episcopal-da-ieab-sobre-o-racismo/?fbclid=IwAR3O_60wIljggzZajGJSMFKZ3thZ45iZWQZdMgZX1q6kgkqST24n9bvYZpE
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